16º congreso de Leitura do Brasil
NORMA SANDRA DE ALMEIDA FERREIRA[1]
Os versos de Ferreira Gullar - Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las - tema eleito para o 16 º Congresso de Leitura do Brasil que acontecerá de 10 a 13 de julho deste ano, são inspiradores também deste editorial.
O poema sugere as jaulas, as prisões e denuncia a desigualdade entre os que têm tanto e os que não têm nem para comer. E clama: o homem tem fome e precisa comer.
Nele, a idéia que nos provoca é a de que na desigualdade econômica e social tem-se também a desigualdade cultural, a exclusão de práticas, o não acesso e o convívio aos bens e lugares da cultura letrada.
Além dos COLEs, a ALB tem colocado em ação, por 25 anos, a edição da revista Leitura: Teoria & Prática, esforço que dá visibilidade ao desejo de romper com armadilhas. Como lidar com a desigualdade cultural em um país de profundas desigualdades sociais? Em que condições, com que força, nossas intervenções podem ajudar a modificar o estado das coisas tais como estão?
Sob a desconfiança de um modelo de leitor ideal que parece existir apenas em plano abstrato e a-histórico, fora das reais condições que de fato envolvem cada um de nós na prática da leitura, ponho-me a pensar nas armadilhas que é preciso quebrar.
Somos reconhecidos como leitores não só porque deciframos o escrito, mas por pertencermos a uma comunidade que tem à sua volta livros, revistas, imagens, e outros objetos da cultura letrada, e ainda vive por isso. Somos cercados de livros e revistas recém editados, comprados em livrarias ou já mais antigos, adquiridos em sebo, emprestados de amigos e bibliotecas, xerocados. Exercitamos no trabalho, no dia-a-dia, conversas sobre textos lidos, indagamos e refletimos com e sobre eles.Temos gestos e práticas rotineiras, dedicadas aos impressos e lugares em que guardamos esses objetos, lidamos com eles, lhes destinamos tempo e compartilhamos modos de perguntar e refletir sobre eles. Fazemos parte de uma comunidade que tem um jeito particular de ler. Um livro lembra outro, que remete a um filme, em que a cena já foi vista em uma pintura, que está em uma revista, que pode ser encontrada em um centro de memória. Lemos pela primeira vez, relemos a mesma obra várias vezes, abandonamos uma leitura iniciada, anotamos partes, saltamos os olhos diretamente pra o que os interessa ler. Uma idéia, uma cena, um argumento nos constitui como lugar de memória ou com uma experiência que de tão arrebatadora nos compele a sentir e entender o que somos e como somos. No mundo há muitas armadilhas, e é preciso quebrá-las.
Ao lado dessa comunidade de leitores, outras, muitas têm sido excluídas, submestimadas, desprestigiadas. O que nos dá uma idéia de pertencimento também nos distingue de tantas outras comunidades de leitores. Acumulamos um capital cultural com valor – status - reconhecido no meio social. Vivemos disso. De falar, escrever, ouvir e ler palavras nossas e dos outros. Muitas vezes, pelas palestras, cursos e publicações, somos remunerados. Na insistência de uma política de leitura que inclua leitores, que forme leitores, que amplie o universo de leitores ou práticas de leitura, promovemos congressos, participamos de assessorias, colaboramos com projetos junto a órgãos públicos. Produzimos um discurso em que a importância da leitura é debatida em suas diferentes nuances e singularidades. Construímos a crença no valor da leitura. No mundo há muitas armadilhas, e é preciso quebrá-las.
Segundo Bourdieu (Pierre Bourdieu, Leitura: uma prática cultural - Debate entre P. Bourdieu e R. Chartier.In: Chartier,R. Práticas de Leitura. SP: Estação Liberdade, 1996,p.238): “É possível que se leia quando existe um mercado no qual possam ser colocados os discursos concernentes às leituras. Se essa hipótese pode surpreender, até chocar, é porque somos precisamente pessoas que têm sempre sob a mão um mercado, de alunos, colegas, amigos, cônjuges etc a quem podemos falar de leituras.Terminamos por esquecer que, em muitos meios, não é possível falar de leituras sem ter ar pretencioso.”.
Vivemos nesta armadilha, de estarmos no lugar daquele que toma a palavra “em nome de” mas que luta para que as palavras sejam tomadas para si e por todos.
Vivemos na armadilha entre o que acreditamos e pelo qual lutamos, mas atentos e desconfiados do lugar, do qual falamos.
Somos leitores e escritores, mas nem todos os brasileiros o são, ou pelo menos não o são do mesmo modo. Para Britto (Luiz Percival Britto.Leitura e participação. In: Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. Campinas, SP, Mercado de Letras, 2003, p.153): “leitores em vários dos sentidos que esta palavra possa ter, já que o saber letrado não é eqüitativamente distribuído. Muitos não chegam a ter um domínio dos sistemas de referências que recobrem os textos escritos e convivência intensa com um conjunto coeso e complexo de discursos”.
Nesta direção, o conjunto de artigos deste número da revista Leitura: Teoria & Prática é mais uma iniciativa para desarmar diferentes armadilhas a que somos expostos, em que somos aprisionados.
[1] Presidente do Conselho Editorial, professora da Faculdade de Educação e membro do grupo de Pesquisa Alfabetização, Leitura e Escrita – ALLE/Unicamp
No hay comentarios:
Publicar un comentario